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Muito Além de Especial: reflexões sobre Inclusão, Coragem e Direitos

Com alguma frequência leio, observo e escuto uma fala, por vezes direcionada à mim, sobre o quão abençoada somos, mães e familiares, por termos um filho ‘especial’. Há quem veja essas crianças como seres divinos, enviados para nos ensinar e espalhar amor. Eles dizem: “Você foi escolhida, Flavia, para ser uma mãe especial. O seu filho é um anjo que veio para derramar amor sobre aqueles que souberem reconhecer sua condição especial”.  Essa fala, repetida tantas vezes, me incomodava profundamente.

Eu me irritava com esses tipos de falas porque me via mergulhada no caos do cotidiano, tentando entender as reações de meu filho: Nico, ainda muito pequeno, chorava, se debatia, batia em mim e nele mesmo, e eu simplesmente não tinha a menor ideia do que acontecia com ele. Era exaustivo tentar entender o que o afetava, o que o fazia sofrer. E, naquele contexto de frustração e cansaço, as palavras sobre ‘benção’ e ‘escolha divina’ me pareciam desconectadas da realidade. Ao longo do tempo, porém, fui suavizando meu olhar. Com paciência, passei a buscar um sentido mais profundo nessa visão que me colocava num lugar de ‘abençoada’. Afinal, algumas dessas palavras vinham de pessoas sensíveis, de bom coração e fé. Mas será mesmo que meu filho é ‘especial’ porque ele tem uma deficiência?

Na verdade, não acredito que alguém seja especial por conta de sua deficiência. Ser especial tem a ver com o que uma pessoa faz de incomum, de extraordinário. Minhas memórias mais especiais não estão atreladas a limitações ou a desafios, mas a experiências marcantes — viagens, peças de teatro, momentos, pessoas que foram especiais para mim em momentos cruciais da minha vida, tanta coisa especial! É bem verdade que filhos sempre são muito especiais, mas meus pais também são especiais e não têm nenhuma deficiência. É importante entender que ‘especial’ não é sinônimo de deficiência. Ser especial não define a deficiência e sim a pessoa num certo momento e por algum motivo.

Embora rejeitasse essa forma de ver, fui dando lugar e acolhendo esse tipo de fala. Comecei a enxergar algo mais, a reconhecer que há um aprendizado profundo em conviver com um filho cujo desenvolvimento foge dos padrões. Tudo muito trabalhoso emocionalmente. Não se trata de me tornar uma pessoa melhor porque eu não era uma pessoa ruim, mas de adquirir novas habilidades, de encontrar maneiras e caminhos de tornar a vida mais acessível para o Nico

Por exemplo, precisei aprender a lidar com o tempo de forma diferente. Sempre fui muito acelerada, mas o Nico me ensinou a desacelerar, me ensinou o modo mais lento de viver. Ele avançava no seu próprio ritmo, o que exigia de mim muita paciência, uma virtude que eu antes não tinha. Não foi nada fácil! Mas cada pequena conquista dele — as mais básicas, que passariam despercebidas para outras mães — era motivo de celebração para mim. Viver no tempo de outra pessoa é, em si, uma experiência transformadora. Permitir-se viver em tempos próprios, é uma coisa rara, especial. Hummm… olha aí a fala.

Foram tantos aprendizados!! Por exemplo, a importância de falar de forma simples e direta, com amor, e sem medo. Com o Nico, floreios, filtros e explicações longas não funcionavam. Tudo precisava ser claro, especialmente quando o assunto era mais delicado, como a sexualidade na adolescência. Ele dizia: “Mãe, vou tocar trombone”. Avisava quando ia demorar no banheiro e nós simplesmente respondíamos com naturalidade: “Tá bom, mas não demora, porque temos que sair.” Sem tabus, sem complicações. Era especial nesse sentido, na simplicidade e na transparência.

Também aprendi sobre a coragem. Criar uma criança com deficiência requer coragem, uma luta constante para promover sua autonomia. Muitos medos são frutos da imaginação e não antecipá-los ou criar barreiras invisíveis é algo que me tornei capaz de fazer. Mas, lá no fundinho, bem lá dentro, o medo tem lugar cativo no coração e nas mentes de pais e familiares de crianças e jovens com deficiência. O medo do futuro, da vida sem mim, sem nós, da solidão que pode vir. Dessa angústia vem o clique para valorizar menos ‘o presente de Deus’ e ir à luta pelos direitos das pessoas com deficiência.

E é justamente aí que me incomoda a visão romantizada de que crianças, adolescentes e adultos com deficiência são seres espiritualmente superiores. Essa visão tem um efeito perigoso: acaba justificando a segregação e a falta de ação concreta. Quando se acredita que essas pessoas são apenas anjos a serem protegidos ou heróis, o foco se perde no que realmente importa: reconhecê-las como cidadãos com plenos de direitos.  

Minha jornada com o Nico me ensinou que o verdadeiro desafio não é apenas lidar com a deficiência, mas garantir que ele tenha acesso a uma vida digna, com direitos respeitados e a inclusão plena em todos os espaços. É fácil romantizar o que é difícil de entender. Mas o caminho para uma sociedade mais justa não passa por idealizações; passa por luta, por garantias de direitos e por reconhecer que todas as pessoas, com ou sem deficiência, têm o direito de viver de forma plena e autônoma.

Tenho convicção, hoje, que precisamos nos concentrar na questão dos direitos humanos. Temos um excelente marco jurídico para proteger e promover os direitos das pessoas com deficiência, mas ainda precisamos aplicá-la plenamente. Devemos lutar por uma inclusão real, em todos os espaços, em todas as esferas, em todos os saberes. Em vez de idealizarmos a convivência com uma pessoa com deficiência, que tal usarmos essa experiência para mover o mundo em direção a uma sociedade mais justa e inclusiva? Isso sim é um aprendizado que vale a pena compartilhar.

Em 2016, nas primeiras fotos com o slogan do Instituto JNG

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